quinta-feira, 7 de maio de 2009

MEDEIROS, Martha. Trem-bala.

Estou lendo "Trem-bala" de Martha Medeiros..e selecionei alguns de seus textos...

O que quer uma mulher

Um bebê nasce. O médico anuncia: é uma menina! A mãe da criança, então, se põe a sonhar com o dia em que a sua princesinha terá um namorado de olhos verdes e casará com ele, vivendo feliz para sempre. A garotinha ainda nem mamou e já está condenada a dilacerar corações. Laçarotes, babados, contos de fadas: toda mulher carrega a síndrome de Walt Disney.

Até as mais modernas e cosmopolitas têm o sonho secreto de encontrar um príncipe encantado. Como não existe um Antonio Banderas para todas, nos conformamos com analistas de sistemas, gerentes de marketing, engenheiros mecânicos. Ou mecânicos de oficina mesmo, a situação não anda fácil. Serão eles desprezíveis? Que nada. São gentis, nos ajudam com as crianças, dão um duro danado no trabalho e têm o maior prazer em nos levar para jantar. São príncipes à sua maneira, e nós, cinderelas improvisadas, dizemos sim! sim! sim! diante do altar; mas, lá no fundo, a carência existencial herdada no berço jamais será preenchida.

Queremos ser resgatadas da torre do castelo. Queremos que o nosso pretendente enfrente dragões, bruxas, lobos selvagens. Queremos que ele sofra, que vare a noite atrás de nós, que faça tudo o que o José Mayer, o Marcelo Novaes e o Rodrigo Santoro fazem nas novelas. Queremos ouvir "eu te amo" só no último capítulo, de preferência num saguão de aeroporto, quando ele chegará a tempo de nos impedir de embarcar.

O amor na vida real, no entanto, é bem menos arrebatador. "Eu te amo" virou uma frase tão romântica quanto "me passa o açúcar". Entre casais, é mais fácil ouvir eu "te amo" ao encerrar uma ligação telefônica do que ao vivo e a cores. E fazem isso depois de terem se xingado por meia-hora. "Você vai chegar tarde de novo? Tenha a santa paciência, o que é que você tanto faz nesse escritório? Ontem foi a mesma coisa, que inferno! Eu é que não vou preparar o jantar para você às dez da noite, te vira. Tchau, também te amo." E batem o telefone possessos.

Sim, sabemos que a vida real não combina com cenas hollywoodianas. Sabemos que há apenas meia dúzia de castelos no mundo, quase todos abertos à visitação de turistas. Sabemos que os príncipes, hoje, andam meio carecas, usam óculos e cultivam uma barriguinha de chope. Não são heróicos nem usam capa e espada, mas ao menos são de carne e osso, e a maioria tentaria nos resgatar de um prédio em chamas, caso a escada magirus alcançasse o nosso andar. Não é nada, não é nada, mas já é alguma coisa.

Dificilmente um homem consegue corresponder à expectativa de uma mulher, mas vê-los tentar é comovente. Alguns mandam flores, reservam quarto em hotéizinhos secretos, surpreendem com presentes, passagens aéreas, convites inusitados. São inteligentes, charmosos, ousados, corajosos, batalhadores. Disputam nosso amor como se estivessem numa guerra, e pra quê? Tudo o que recebem em troca é uma mulher que não pára de olhar pela janela, suspirando por algo que nem ela sabe direito o que é... Perdoem esse nosso desvio cultural, rapazes. Nenhuma mulher se sente amada o suficiente.
Agosto de 1997.

A idade de casar

O amor pode surgir de repente, em qualquer etapa da vida, é o que todos os livros, filmes, novelas, crônicas e poemas nos fazem crer. É a pura verdade. O amor não marca hora, surge quando menos se espera. No entanto, a sociedade cobra que todos, homens e mulheres, definam seus pares por volta dos 25 e 30 anos. É a chamada idade de casar. Faça uma enquete: a maioria das pessoas casa dentro dessa faixa etária, o que de certo modo é uma vitória, se lembrarmos que antigamente casava-se antes dos 18. Porém, não deixa de ser suspeito que tanta gente tenha encontrado o verdadeiro amor na mesma época. O grande amor pode surgir aos 15 anos. Um sentimento forte, irracional, com chances de durar para sempre. Mas aos 15 ainda estamos estudando. Não somos independentes, não podemos alugar um imóvel, dirigir um carro, viajar sem o consentimento dos pais. Aos 15 somos inexperientes, imaturos, temos muito o que aprender. Resultado: esse grande amor poderá ser vivido com pressa e sem dedicação, e terminar pela urgência de se querer viver os outros amores que o futuro nos reserva.

O grande amor pode, por outro lado, surgir só aos 50 anos. Você aguardará por ele? Aos 50 você espera já ter feito todas as escolhas, ter viajado pelo mundo e conhecido toda espécie de gente, ter uma carreira sedimentada e histórias pra contar. Aos 50 você terá mais passado do que futuro, terá mais bagagem de vida do que sonhos de adolescente. Resultado: o grande amor poderá encontrá-lo casado e cheio de filhos, e você, acomodado, terá pouca disposição para assumí-lo e começar tudo de novo.

Entre os 25 e 30 anos, o namorado ou namorada que estiver no posto pode virar nosso grande amor por uma questão de conveniência. É a idade em que cansamos de pular de galho em galho e começamos a considerar a hipótese de formar uma família. É quando temos cada vez menos amigos solteiros. É quando começamos a ganhar um salário mais decente e nosso organismo está a ponto de bala para gerar filhos. É quando nossos pais costumam cobrar genros, noras e netos. Uma marcação cerrada que nos torna mais tolerantes com os candidatos à cônjuge e que nos faz usar a razão tanto quanto a emoção. Alguns têm a sorte de encontrar seu grande amor no momento adequado. Outros resistem às pressões sociais e não trocam seu grande amor por outros planos, vivem o que há pra ser vivido, não importa se cedo ou tarde demais. Mas grande parte da população dança conforme a música. Um pequeno amor, surgido entre os 25 e 30 anos, tem tudo para virar um grande amor. Um grande amor, surgido em outras faixas etárias, tem tudo para virar uma fantasia.
Junho de 1998.

Os Melhores, os piores e os diferentes

Lendo Cadernos de Lanzarote, publicação dos diários escritos pelo escritor José Saramago, encontrei em determinado trecho uma idéia que há muito me persegue: como é limitado julgar os outros baseado no quesito melhor ou pior. Saramago, no livro, agradece, a uma leitora por tê-lo considerado um escritor diferente dos demais, em vez de achá-lo o melhor. Não sei se foi falsa modéstia, mas prefiro acreditar que ele realmente sentiu-se mais elogiado assim. Hoje em dia, ou somos os mais bem vestidos, os mais viajados, os melhores cozinheiros, as melhores decoradoras, ou somos nada. Ou fazemos parte do time de vencedores, ou estamos do outro lado, perdendo. Vivemos num mundo absolutamente hierarquizado e maniqueísta: somos grandes ou pequenos, ricos ou pobres, integrados ou marginais.

Não que esse raciocínio seja destituído de lógica, mas incentiva pouco a criatividade. Julgar alguém melhor ou pior do que outro pressupõe que existam fórmulas soberanas, e melhor será aquele que obedecê-las. Admito que é utópico imaginar uma sociedade desprendida de juízos de valor, mas seria muito mais democrático, rico e estimulante um mundo onde a diferença fosse valorizada não como uma excentricidade, mas como busca de uma identidade própria.

Qual foi o melhor filme de 98, Titanic, de James Cameron, Carne Trêmula, de Almodóvar, ou Jackie Brown, de Tarantino? A maioria da população escolheria o primeiro, não porque sejá original, empolgante, moderno, perturbador (não é), mas porque é o menos surpreendente, o mais igual. Os outros fogem a qualquer parâmetro, não podem ser melhores nem piores porque não facilitam a comparação, diferem. Seu mérito é também seu castigo.

Por que o humor do Vida ao Vivo Show não emplaca, enquanto A Praça é Nossa comemora bodas de ouro na televisão? Por que as novelas são iguais, os locutores de FM sempre berram e as lojas vendem as mesmas roupas? Por que todos precisam de um forno de microondas, se sabemos que tira o gosto da comida? Ora, porque para sermos eleitos os melhores ou piores temos que nos adaptar às regras do consumo e do conviver. Nenhuma miss ganharia a faixa se usasse piercing, nenhum advogado chegaria a juiz se desmunhecasse e nenhuma senhora teria sua casa fotografada para uma revista de decoração se não tivesse o teto da sala rebaixado com gesso. Somos, nem tanto por burrice, mas por reflexo condicionado, prisioneiros do julgamento alheio. Tememos outras alternativas que não sejam as já testadas e aprovadas. Os diferentes abrem caminhos, criam opções, sobrevivem da própria independência, enquanto os outros vêm atrás, concorrendo ao título de melhores ou piores em repetição.
Dezembro de 1998.

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