quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Isabel Allende








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Queria conseguir escrever igual a Isabel Allende - é bom sonhar.Estou lendo Retrato em Sépia, tô gostando muito. Vou postar aqui um pedaço, só pra mostrar a maravilha da escrita dessa mulher. 
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“Tao Chi’en levantava-se antes do amanhecer e saía para o jardim, onde realizava seus exercícios marciais destinados a manter o corpo em forma e a mente aberta. Em seguida meditava durante meia hora e depois acendia o fogo embaixo da chaleira. Despertava Eliza com um beijo e uma xícara de chá verde, que ela sorvia lentamente na cama. Aquele era um momento sagrado para os dois: a xícara de chá que bebiam juntos fechava a noite compartida em estrito abraço. O que acontecia entre eles, atrás da porta fechada de seu quarto, compensava todos os esforços do dia. O amor de ambos havia começado como uma suave amizade, tecida sutilmente em meio a uma teia de obstáculos, da necessidade de se entenderem em inglês e de saltar por cima do preconceito de cultura e raça até os anos de diferença em idade. Viveram e trabalharam juntos sob o mesmo teto durante mais de três anos, antes de ultrapassarem a fronteira invisível que os separava. Foi necessário que Eliza andasse em círculos, milhares e milhares de milhas, realizando uma viagem interminável em busca de um amante hipotético, que lhe escapava por entre os dedos como uma sombra, que pelo caminho fosse deixando pedaços de seu passado, retalhos de sua inocência, e que enfrentasse suas obsessões diante da cabeça decapitada e macerada em genebra, do legendário bandido Joaquín Murieta, para compreender que seu destino estava ao lado de Tao Chi’en. Em troca, o zhong-yi, que soubera disso muito antes dela, foi capaz de espera-la com a silenciosa tenacidade de um amor maduro.
Na noite em que Eliza havia ousado, finalmente, percorrer os oito metros de corredor que separavam o seu quarto do de Tao Chi’en, suas vidas haviam mudado completamente, como se a golpes de machado tivessem cortado a própria raiz do passado. A partir daquela noite ardente não houve a menor possibilidade de recuo, tudo que havia era o desafio de abrir espaço em um mundo que não tolerava a mistura de raças. Eliza chegou descalça, vestindo sua camisola de dormir, tateando nas sombras; empurrou a porta de Tao Chi’en, certa de que o encontraria destrancada, pois tinha adivinhado que ele a desejava tanto quanto ela a ele, mas, apesar dessa certeza, sentia-se assustada ante a irreparável finalidade de sua decisão. Havia vacilado muito antes de dar aquele passo, porque o zhong-yi era seu protetor, seu pai, seu irmão, seu melhor amigo, sua única família naquela terra estranha. Temia perder tudo ao transformar-se em sua amante; mas já estava no umbral, e a ânsia de toca-lo pôde mais do que as sutilezas da razão. Entrou no quarto e, à luz de uma vela que queimava sobre a mesa, viu-o sentado na cama, com as pernas cruzadas, vestindo túnica e calças brancas de algodão, esperando-a . Eliza não chegou a se perguntar quantas noites ele teria atravessado daquela maneira, atento ao ruído de seus passos no corredor, pois estava aturdida pela própria audácia, trêmula de timidez e antecipação. Tao Chi'en não lhe deu tempo de retroceder. Foi ao seu encontro, abriu os braços, e ela avançou cega até estilhaçar-se no choque contra seu peito, no qual afundou o rosto, aspirando o cheiro tão conhecido daquele homem, um aroma salino de água do mar, agarrando-se, com as duas mãos, à túnica de Tao, porque seus joelhos fraquejavam, enquanto um rio de explicações brotava-lhe irrepresável dos lábios  e se misturava com as palavras de amor que ele murmurava em chinês. Sentia os braços que a levantavam do chão e a depunham suavemente na cama, sentiu o hálito tíbio em seu pescoço e as mãos que a dominavam; então uma irreprimível angústia a possuiu, e ela começou a tremer, arrependida e assustada.
Desde que sua esposa morrera em Hong Kong, Tao Chi'en tinha buscado consolo, de vez em quando, nos esperados abraços de mulheres pagas. Havia mais de seis anos que não fazia amor amando, mas não permitiu que a pressa o precipitasse. Tantas vezes seu pensamento havia percorrido o corpo de Eliza, tão bem a conhecia, que agora era como andar munido de um mapa pela sucessão de seus vales suaves e suas pequenas colinas. Ela acreditava ter conhecido o amor nos braços de seu primeiro amante, mas a intimidade com Tao Chi’en tornou evidente o tamanho de sua ignorância. A paixão que a transtornara aos dezesseis anos, e pela qual havia atravessado metade do mundo e arriscado a vida várias vezes, não tinha passado de miragem, de algo que agora lhe parecia absurdo; naquela ocasião havia se enamorado do amor, conformando-se com migalhas que lhe eram oferecidas por um homem mais interessado em ir do que ficar com ela. Procurou-o durante quatro anos, convencida de que o jovem idealista que conhecera no Chile havia se transformado, na Califórnia, em um bandido fantástico, sob o nome de Joaquín Murieta. Durante todo aquela tempo Tao Chi’en havia  esperado por ela com sua calma proverbial, convencido de que cedo ou tarde ela cruzaria o umbral que os separava. Coube a ele acompanhá-la quando exibiram a cabeça de Joaquín Murieta, para diversão de americanos e escárnio de latinos.  Pensou que Eliza não resistiria à visão daquele repulsivo troféu, porém ela se plantou diante do frasco em que descansava o suposto criminoso e o olhou impassível, como se aquilo não passasse de um repolho em conserva, até adquiriu a certeza de que não era aquele o homem a quem havia procurado durante anos. De fato, pouco lhe importava agora sua identidade, pois, no decorrer da longa viagem em que havia seguido a pista de um romance impossível, Eliza tinha adquirido algo tão precioso quanto o amor: a liberdade. “Agora estou livre”, foi tudo que disse diante daquela cabeça. Tao Chi'en compreendeu que finalmente ela havia rompido as amarras com o antigo amante, que pouco lhe importava saber se ainda vivia ou se morrera procurando ouro nas encostas da Serra Nevada; em qualquer dos casos deixaria de procurá-lo, e, se algum dia ele aparecesse, então ela já seria capaz de vê-lo em sua verdadeira dimensão. Tao Chi’ en tomou-a  pela mão e se afastaram daquela sinistra exposição. Lá fora respiraram ar fresco e se puseram a caminhar em paz, dispostos a começar uma nova etapa em suas vidas.
Na noite em que Eliza entrou no quarto de Tao Chi’en, tudo foi muito diferente dos abraços clandestinos e apressados que havia trocado com seu primeiro amante no Chile. Naquela noite  descobriu algumas das múltiplas possibilidades do prazer e se iniciou na profundidade de um amor que seria o único para o resto de sua vida.(...)

A partir daquela primeira noite de amor dormiram sempre enovelados, respirando o mesmo ar e sonhando os mesmos sonhos; mas suas vidas não eram fáceis, tinham permanecido juntos durante quase trinta anos em um mundo no qual não havia lugar para uma parceria  como a que formavam. Com o correr dos anos, aquele chinês alto e aquela  pequenina mulher branca tornaram-se uma visão familiar em Chinatown, mas nunca foram totalmente aceitos. Aprenderam a não tocar-se em público, a sentar-se separados no teatro e a caminhar na rua com vários passos de distância entre os dois.(...)

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